O futuro do Direito do Trabalho do futuro

Como o Direito do Trabalho pode acompanhar o cenário de inovação e disrupção tecnológica no século XXI?

Esse desafio se apresenta em um cenário no qual 65% das crianças irão exercer profissões que ainda não existem atualmente; ou, ainda, em um cenário no qual as profissões mais demandadas no atual mercado de trabalho nem sequer existiam há 10 anos, segundo relatório do Fórum Econômico Mundial.

E não é só. Esse debate parece vilipendiado no Brasil, sobretudo diante do presente cenário de crise econômica. Nesse contexto, tornou-se politicamente atrativa a aprovação de uma “Reforma” Trabalhista, que acabou por culminar na alteração de 104 artigos pela Lei nº 13.467/2017 e por tornar a CLT notadamente menos protetiva. Doutrinariamente, não se pode negar que isso já era esperado, sobretudo à luz dos “argumentos econômicos” que embasam historicamente essas mudanças legislativas.

Dessa maneira, nesses contextos de crise econômica, reverberam-se falsas retóricas, a partir das quais (i) se aproximam, via legislação e jurisprudência, a pauta da legislação empresarial e trabalhista; (ii) se amplia a presença de novas práticas contratuais (contratos híbridos ou “atípicos”); (iii) se relativiza a própria noção de subordinação jurídica, ampliando-se os “autônomos”, os “contratantes independentes”v, as empresas individuais, cooperados e outras formas atípicas de trabalho.

Nesse cenário, portanto, deparamo-nos com o paradoxo que o desenvolvimento tecnológico pode provocar no Direito do Trabalho: se, por um lado, pode impulsionar a criação de novas empresas, funções e oportunidades trabalhistas, por outro, pode também proporcionar e intensificar a sua precarização.

Pensar o futuro do Direito do Trabalho do futuro enseja, não obstante, algumas incursões prévias e descritivas do atual cenário. Passamos a abordar três destas, as quais cunhamos, para efeitos meramente didáticos, do (i) engajamento do Direito do Trabalho em falsas retóricas; da (ii) ‘idiotização’ do Direito do Trabalho; e, por fim, dos (iii) ensinamentos de Belchior neste campo de estudo. Ao fim, aponta-se um alento e um possível caminho para a compatibilização do Direito do Trabalho com as novas tecnologias.

No que tange à primeira incursão prévia, verifica-se que o atual cenário trabalhista está imerso em falsas retóricas proferidas pelos detratores do Direito do Trabalho. Destacamos duas principais facetas dessa retórica que atuam de maneira simbiótica para desacreditar nosso Direito do Trabalho:

(a) a crença que legislação trabalhista seria paternalista, garantindo direitos sem paralelo em outros países do mundo, levando o “Custo Brasil” às alturas – prejudicando a empregabilidade, a competitividade empresarial e o crescimento econômico; e

(b) a suposição que a própria Justiça do Trabalho seria superprotetora e que, a partir de uma interpretação enviesada dessa legislação já excessiva, puniria demasiadamente o empresário – homem de bem e trabalhador – ao julgar procedente ações infundadas de empregados gananciosos.

Trata-se de afirmações graves que deveriam ser sustentadas por uma robusta pesquisa empírica e qualitativa. Ocorre que simplesmente não existem evidências de que essas premissas são verdadeiras.

Nesse cenário político no qual a anti-intelectualidade parece estar em voga, faz-se necessário, mais do que nunca, que os juristas trabalhistas pratiquem ciência (falseabilidade de premissas à luz de pesquisas empíricas e qualitativas).

Para isso, em primeiro lugar, cabe ressaltar que a própria premissa de que a legislação trabalhista é superprotetiva é bastante questionável. Ao verificar o IPE (Índice de Proteção ao Emprego), elaborado pela tão desejada OCDEvii (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), verifica-se que o Brasil ocupa apenas a 55ª posição, entre 69 países pesquisados, possuindo uma rigidez trabalhista abaixo da média mundial.

Além disso, não há nenhuma correlação estatística significativamente relevante entre (i) o IPE e capacidade produtiva nacional (PIB per capita); (ii) entre o IPE e a produtividade do trabalho (PIB/população); (iii) entre o IPE e a competitividade internacional (exportações); (iv) entre o IPE e o IDE (Fluxo de Investimento Direto do Exterior) e, por fim, entre a (v) flexibilização da legislação trabalhista (decréscimo do IPE) e a diminuição dos níveis de desigualdade (Índice de Gini).

No que tange à primeira incursão prévia, deve-se destacar, ainda, que proteção legal ao trabalhador não se traduz em proteção efetiva. Dessa maneira, países com proteções legais destoantes (eg. Brasil com IPE nº 1,75 e EUA com IPE nº 1,17) podem apresentar proteções efetivas bastante semelhantes, sobretudo quando se compara a jurisdição trabalhista nesses países.

Os Estados Unidos, por exemplo, possui um “Custo-EUA” trabalhista extremamente elevado, na medida em que suas Cortes condenam os empregadores a pagar valores milionários quando violam direitos (muitas vezes em razão da aplicação de punitive damages – instituto rejeitado pela jurisprudência brasileirax). Ademais, o que realmente significa uma Justiça do Trabalho superprotetora?

Numa perspectiva de valor da indenização, como visto, é possível afirmar que o Poder Judiciário norte-americano é mais protetor que o brasileiro, uma vez que aquele fixa indenizações bastante superiores às brasileiras em causas trabalhistas.

Fato é que esse debate público é nivelado por baixo e permeado por falsas retóricas adotadas como dogmas por setores que, hoje, dominam a discussão política. Os defensores do Direito do Trabalho, porém, limitam-se a combater seus detratores se engajando nesses discursos de desinformação. Não se discutem novos e melhores paradigmas, apenas se busca reafirmar os vigentes.

É isso que passamos a denominar como a ‘idiotização’ do Direito do Trabalho enquanto campo de estudo. Isso porque este parece se imergir nessas falsas retóricas e nessa cortina de fumaça para ignorar, sobretudo, que o futuro sempre vem e que precisamos de novos paradigmas para compatibilizar o princípio tuitivo do Direito do Trabalho com as novas tecnologias.

Nesse contexto, pode-se afirmar que o direito trabalhista não detém uma gestão adequada do risco de precarização que as inovações tecnológicas podem proporcionar às relações de trabalho. Diferentemente dos cálculos e da estrutura normativa na qual se ampara o Direito Ambiental, por exemplo, não existem mecanismos que buscam antecipar os efeitos dessas novas plataformas tecnológicas nos postos de trabalho e nos serviços em que elas atuam. Seria difícil avaliar o impacto no trabalho, porquanto não se consegue isolar a precarização específica proporcionada apenas por essas plataformas no mundo laboral, despindo-se de todas as outras variáveis da macroeconomia.

Ocorre que o Direito do Trabalho não possui mecanismos com esse nível de sofisticação. O foco da estrutura normativa justrabalhista é a repressão e a reparação pecuniária ao trabalhador que teve seus direitos lesados.

Partir sempre do paradigma da repressão, no entanto, dificulta essa gestão de riscos relacionados aos impactos das novas tecnologias, o que permite que os detratores do Direito do Trabalho apresentem suas falsas dicotomias, por meio do discurso da escassez econômica.

Fato é que, ao se engajar em falsas retóricas a partir de uma ótica de efetivação de direitos puramente repressiva, o Direito do Trabalho parece estar sofrendo um processo de “idiotização”, ignorando a máxima de Belchior de que o novo sempre vem. E esse aviso não é um despropósito e nos conduz à última das nossas incursões sobre o atual cenário do Direito do Trabalho no Brasil.

Não adianta, nesse contexto, apenas se limitar a discutir, por exemplo, a presença, ou não, de vínculo de emprego ou de danos existenciais suportados pelos trabalhadores de aplicativos ligados à gig e à sharing economy. Provavelmente nunca haverá uma resposta em abstrato para essas questões, sobretudo diante da necessidade de se analisar a arquitetura específica dessas plataformas do comercial P2P (peer to peer) sharing, que buscam interligar o usuário da plataforma (peer) a um prestador de serviço supostamente autônomo (o outro peer) para gerar lucro.

Adotar essa premissa não significa concluir que essas discussões individualizadas seriam inócuas ou desimportantes. É sim necessário e essencial sofisticar o debate sobre vínculo de emprego e danos existenciais. É preciso, no entanto, pensar também em soluções abrangentes para a regulação entre o trabalho e as novas tecnologias. Tais soluções, porém, não se confundem com o discurso precarizador dos detratores do Direito do Trabalho, que adotam a falsa dicotomia entre direitos e crescimento econômico.

É sob essa dificuldade (em gerir os riscos das novas tecnologias na ordem econômica e social) que a Justiça do Trabalho e o legislador devem reagir a uma realidade dinâmica, sem se desvirtuar, no entanto, da promoção dos direitos fundamentais. As novas tecnologias mudam paradigmas jurídicos relacionados à posse e à propriedade, por exemplo, despertando a aplicação (ou não) dos arranjos regulatórios tradicionais ou a modernização (adaptação) destes.

Além das diretrizes já fixadas acima, na qual entendemos que o paradigma da Direito do Trabalho deve conduzir atenções à prevenção da precarização e das violações trabalhistas, encontramos uma bússola na atuação de organismos multilaterais, como a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Em alguma medida, esses organismos sempre entronizam pressão para mudanças legislativas e jurisprudenciais. E é nesse contexto, por fim, que se ressalta o recente relatório elaborado pela Comissão Mundial sobre o Futuro do Trabalho, intitulado ‘Trabalhar para um futuro melhor”.

O relatório aponta os principais desafios para o trabalho do futuro, suscitando reflexões e diretrizes resumidas em três pilares: (i) investimento nas capacidades das pessoas, (ii) investimento no trabalho digno e sustentável e, por fim (iii) investimento nas instituições do trabalho. (Re)afirma-se o ser humano como razão e o fim do desenvolvimento econômico e tecnológico; reafirma-se a centralidade na dignidade humana e no valor social e ético do trabalho para os empregados e para a sociedade. Todas essas conclusões relacionam-se ao conceito de trabalho decente já formalizado pela OIT.

Infelizmente, estamos trilhando o sentido oposto. Há 10 (dez) dias, na Comissão de Normas da 108ª Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, o Brasil foi incluído no rol de países suspeitos de violar as normas trabalhistas internacionais, ao lado de países como Líbia, Iêmen, Zimbábue, Cazaquistão, Etiópia e Iraque. Imergido em falsas retóricas, o Direito do Trabalho brasileiro parece perder décadas de conquistas e possíveis avanços nos quais deveríamos trilhar.

De sofismas a belchior, passando, claro, por pitadas de anti-intelectualismo e de ‘idiotização’ do direito trabalhista, precisamos, todos, rejuvenescer. Não se trata de jogar fora as roupas que já serviram, ainda servem e continuarão a servir, mas sim de se abrir para novas e melhores perspectivas que tratam de mudanças estruturais, concretizando a força normativa do Direito do Trabalho.

Fonte: Portal Jota – por Matheus Vinícius e Cláudio Barbosa.

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